quinta-feira, 20 de setembro de 2007

16º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (VI)

- E chegamos até o ponto a que eu tinha me referido no início, Pingolim. Séculos se passaram, gerações se sucederam e sol e lua continuaram adorados e temidos como deuses. Construiu-se uma religião, celebraram-se mártires e obedeceu-se a homens que nada tiveram de extraordinário, mas apenas que arrogaram para si a função de difundir e de ministrar os costumes e as tradições daquele povo.
- Até que...
- Não obstante épocas de prosperidade terem se sucedido, decerto é que, de tempos em tempos, meses passavam sem que uma gota de água caísse do céu. As plantações sucumbiam, o gado diminuía, pessoas morriam de sede e de fome. Pelo menos os condenados tinham a quem recorrer, em quem depositar as esperanças, a quem rogar. Levantavam uma cuia de barro aos céus e repetiam, como num mantra, os dizeres divinos da velha anciã, corroborando a relação clientelista estabelecida entre aqueles homens e seus pretensos deuses.
“Esses ritos se repetiam todos os dias, incansavelmente. Meses passavam e voltava a cair água do céu, representando um alento de alegria aos condenados. Afinal, não havia, para eles, nada pior do que estar condenado: condenado a viver”.
“No entanto, como havia te falado no início deste relato, numa dessas secas, quando repentinamente caiu uma tempestade na freguesia, após meses sem chuva, adentrou aquelas paragens um forasteiro no lombo de um animal jamais visto por qualquer um daqueles homens, trazendo consigo um baú de madeira”.
“Aquela cena fora terrivelmente surpreendente. Os condenados viviam isolados numa depressão de terras, sem qualquer contato com o que houvesse além dos morros que os cercavam. Sabe-se que, nesse interregno, muitos tentaram fugir. Porém, ninguém jamais voltara à escuridão da caverna platônica onde viviam os condenados para explicar aos demais como era o suposto mundo das idéias, do outro lado das bordas do caldeirão fervente. Inúmeras eram as especulações, as lendas, os mitos, as histórias e as visagens. No entanto, apenas uma afirmação se fizera unânime verdade entre os condenados: partir era não voltar jamais; ficar era aceitar a condenação de viver a esmo.”
“O homem desconhecido, de feições físicas flagrantemente distintas dos seres que viviam na freguesia, tomou a atenção e despertou o medo de todos. Os cabelos longos da cor da terra, meio amarelado, os olhos cor de cacto, a pele branca avermelhada – a mesma cor do céu no crepúsculo –, o corpo espichado e a carne bem dividida formavam um fenótipo jamais visto por aqueles condenados, tão acostumados a verem, entre si mesmos, homens esguios, de peles escuras, de olhos escuros, de cabelos escuros, de vidas escuras. Chegaram alguns a se indagar, no silêncio de seus pensamentos, se aquele ser que se prostrava perante os condenados era, de fato, das suas mesmas estirpe e carne”.
“Mais surpreendente ainda era o animal que o acompanhava, cabalmente distinto das vacas e dos cabritos a que estavam acostumados os condenados: um animal alto, rosto imponente, cabelos lisos e longos, idênticos ao do seu dono, e a pele cabeluda da cor de sujo”.
- Vêem este baú? Vêem este baú – passou a gritar o homem no meio da viela principal da freguesia, atraindo a atenção de todos, não obstante a chuva torrencial – Trago nele coisas que mudarão as suas vidas! Para sempre!
“E os homens se curvaram irremediavelmente diante do novo. Poucos minutos depois, ao redor do desconhecido se prostraram calados todos os condenados, atentos solenemente à abertura do baú.”
“O espanto foi geral quando o forasteiro retirou do baú o primeiro objeto, uma fina camada quadrada e de bandas arredondadas, inacreditavelmente capaz de refletir a imagem daquilo que estivesse à sua frente, tal qual as águas plácidas da margem do rio Pituba:”
- Um espelho! – bradou prazerosamente o forasteiro.
“Tornou ele ao baú e retirou novos objetos, realizando demonstrações de suas utilidades:
- Escovas para os pelos da cabeça!
- Facas para o corte das carnes!
- Vestido para as mulheres!
"Em meio às novas experiências, uma das crianças tentou mexer sozinha no baú, sendo prontamente surpreendida pelo forasteiro:”
- Opa! Não, não! São meus. Por enquanto são meus... Mas... Bem... Podemos fazer negócio!
- Negócio? Que é isso? – questionou um dos condenados, intrigado.
- Troco essas iguarias por ouro!
- Ouro?
- Ouro! Isso daqui! Olha! – pegou de dentro do bolso uma pedrinha amarela e brilhante, tão desconhecida pelos condenados quanto os outros objetos.
- Não temos isso.
- Não tendes isso? E nunca tiverdes a curiosidade de escavar esses paredões? Os homens do outro lado o fazem!
- Homens do outro lado?
- Ué, sim! Do outro lado desses paredões...
- E vivem outros homens perto daqui?
- Nossa! Muitos! Do outro lado desses paredões há Vetusta, a cidade do ouro, onde as paredes das casas são revestidas com essas pedrinhas brilhantes aqui. Naqueles paredões há muitas dessas pedrinhas. E isso vale muito! Tenham ouro e suas vidas mudarão!
- Nunca ouvimos falar. Nunca conseguimos chegar lá.
- Ora! Se falamos a mesma língua, é porque talvez tenhamos o mesmo tronco genético.
- Mesma língua? Como assim?
- Ué, existem pessoas, homem como nós, que falam diferente, utilizando diferentes signos! Está vendo aquele bicho ali? Nós o chamamos de cavalo, mas há quem o chame de “tonto”. Enfim, apenas designamos para as mesmas coisas nomes diversos, mas nem por isso sentidos diferentes. Onde ele for, seja cavalo ou “tonto”, será o mesmo animal.
- Estranho...
- Mas se não tendes ouro, não posso demorar por aqui! – o forasteiro iniciou o recolhimento dos objetos, colocando-os rapidamente no baú – Mas visitais Vetusta, é logo ali! Quem chega lá, jamais quererá voltar!
- Espera! Fica conosco por hoje. A chuva está afinando, e à noite faremos oferendas à deusa lua, em agradecimento. Finalmente nos mandou água do céu.
- Deusa lua? Deusa? Deusa, o feminino de Deus?
- Ué... Lua, a esposa do sol, nosso outro deus.
- Não creio... E Jesus?
- Que Jesus?
- Que deuses estranhos vós professais! Não credes em Jesus aqui?
- Não conhecemos quem é esse.
- Em Vetusta, professa-se um só Deus desde que os homens de língua estranha lá chegaram. Chegaram polvorosos, em guerra! Eu mesmo sou descendente de um deles.
- Guerra?
- Sim! Guerras, lutas, canhões, armas!
- Armas? Canhões? Não conhecemos isso por aqui.
- Estais muito atrasados! Isto não é civilização! Vejais as vossas roupas! Usava-se isto em Vetusta há meio século atrás!
- Meio o que?
- Século! Ora! O conjunto de cem anos!
- Anos?
- Anos! O conjunto de trezentos e sessenta e cinco dias!
- Trezentos e sessenta o quê? Dias?
- Não sabem os números por aqui?
- Números?
- Ai, meu Deus! Sois mais rudes do que eu imaginei! Vou-me embora daqui. Não me quedo mais um segundo nesse primitivismo!
“O forasteiro passou a recolher mais apressadamente os objetos restantes, tomando-os das mãos das pessoas, antes tratadas como potenciais clientes e agora vislumbradas como primitivas, atrasadas, incapazes de entender o mundo fora da cratera (caverna?) e, definitivamente, condenadas ao fracasso e à escuridão”.
“Trancou o baú novamente e se dirigiu ao cavalo, sendo observado atentamente pelos habitantes da freguesia. Amarrou o baú no lombo do animal e logo se armou, dirigindo-se ao grande paredão de montanhas que dividia a freguesia do resto do mundo. Voltou o olhar superior aos homens que o observavam, e não hesitou em afirmar:”
- Vetusta é não muito longe daqui. Três dias e duas noites a cavalo.
“Antes que alguém pudesse indagar ou pelo menos rogar mais informações acerca do novo mundo que há pouco se descortinara, o cavalo apressou os passos e o forasteiro desapareceu no redemunho de barro e de poeira que o seu rápido movimento provocou na terra”.
[continua...]

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Réplica

Desculpem a falta de educação, a interrupção. Nunca desculpem a falta de desejo. Desejo de ser algo, de ser alguém. Não tentemos definir um sentido ao "ser alguém", não é essa a intenção. Mas vamos ser sinceros, singelos! Estamos todos reunidos, vivemos em um mundo mais ou menos comum. Comemos coisas parecidas, instituímos maneiras de reprimir o diferente, e, com tudo isso, perdemos o alento pela real criatividade. Somos livres prisioneiros do pensamento. Desde a maneira de falar, até as próprias palavras utilizadas, somos reféns das pré concepções. Aproveitar a chance de caminhar solo, de criar fronteiras próprias é uma diligência que não ocorre a muitos. Talvez pela ironia que é buscar apoio sentimental no outro, talvez pela ausência de ímpeto. Não sei.

Não, Rebecca, não estou tentando me redimir. Quero que entenda meu ponto de vista. Se estamos diante do abismo, por que não pular? Viver o resto da vida na ponta dos pés parece-me muito mais doloroso. Não acha? É tão difícil encontrar alguém que agarre a causa, que lute pelo que quer sem pensar na repressão que lhe atinge. Ah, não, não me venha com essa. Como poderia pensar nos outros? Algum deles, por acaso, pensa em mim? Sim, seu silêncio diz muito, sua reprimenda animal. Desculpe! Desculpe. Estou ansioso. Quero viver a vida, quero ser feliz, quero andar de patins à tarde e ser rico ao mesmo tempo. AH, deveria morar em outro país, então, não? (Risos). Sim, estou falando sério. É, roubar é outra opção. Uma que não condiz muito comigo. Não me entenda mal, não quero julgar aqueles que o fazem. Até porque, não sei de suas necessidades. O problema é que não me cai bem esse papel. Olhe minha cara, não sei mentir, fingir estar morto.

Aliás, há coisa mais deprimente que se fingir de morto? Melhor morrer protestando que fingir estar morto para não fazê-lo. Não acha? Ah, Alice, esqueça essa bobagem Não quiseram insultá-la. Sua personalidade só condiz com essa última colocação. Por isso te olharam. Não, querida, não chore. Não, não queime seus dedos. Isso. Relaxe. Não. Não acho que seja assim. Eles que a enxergam dessa forma. Eu? Eu a venero, admiro, desejo. Assim é melhor? Pronto, resolvemos. Depois dizem que vocês são frutos de minha imaginação. Estão brincando comigo.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Possível encontro da contingência com a possibilidade

C’est la vie. É a vida. Assim explicamos, a nós mesmos, os acontecimentos dolorosos de nosso dia-a-dia. Os caminhos nunca certos, os desvios, sempre errados, a carga emocional envolvida nas decisões que tomamos com certa freqüência. Para toda dor inadvertida, todo rastro de desgosto ou toda angústia prolongada, culpamos a vida. A mesma vida que nos abraça, que nos remete ao futuro próximo e também ao não tão próximo. A mesma vida que nos dá esperança de passar por cima, de encontrar vontade onde não há mais coragem. A mesma vida que lutamos tanto para manter. É nela que encontramos o maior desafio para a felicidade, que encontramos a rejeição ao nosso planejamento, e ao anseio de sermos fortes.

Talvez faça parte de nossa condição, como seres humanos, estarmos envolvidos nessa leve e dura contradição. Pois não é em outro lugar, que não na própria existência, que descansa a ambigüidade. O altruísmo que existe na vida, só existe em função dela. Entretanto, também só é atrapalhado por ela. Ao mesmo tempo que viver nos arranca das cadeiras para gritar de felicidade, esse caminhar é a escova que penteia os cabelos da derrota. Se não agora, no futuro, se não no futuro, no passado. Estamos fadados a perder eternamente, então? Acho que não. Depende muito da concepção de perder de cada um. Se perder é não ganhar, confesso minha simpatia pela visão mais pessimista. Mas se há outra forma de entender o termo perder, talvez essa não seja a solução.

Talvez o melhor recurso seja brigar, lutar pela vida que temos contra suas próprias circunstâncias. Assim, justificaríamos nosso fardo pela merda contingencial que é a guerra para ser feliz. É como se existisse um guru sombrio e invisível que proferisse a seguinte frase: “Sou guardião da vida, digite o código para desfrutá-la.” O existente, o ser-aí, o vivente, então, responderia: “Então me diga onde, como e quando posso conhecer o segredo.” “Ah,” retrucaria o mestre, “dai-me o que possui de mais precioso, que eu mesmo lhe presentearei com essa sabedoria”. O real construtor de uma vida, aquele que luta para mantê-la, responderia, então, dando-lhe sua própria.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

15º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (V)

E a essa sucessão de fatos inesperados designaram aqueles homens sentidos tão incomuns quanto os próprios acontecimentos. O aparentemente inexplicável, transgressor da normalidade, transformou-se no surreal, no perfeito, no divino. Transformaram a velha anciã em mártir. Afinal, morrera afirmando humildemente a verdade. A sua verdade, tão negligenciada e zombada por todos, era, na visão daqueles condenados, a afirmação do futuro, a resposta de alguém que muito viveu e que entendia tais desígnios melhor do que qualquer um deles.
O homicida não suportou o constrangimento de ter sido responsável por tal desgraça e, no mesmo dia, seu corpo jazia dependurado em uma corda, na porta de sua própria casa. Ao assassino, o desprezo de todos; à velha, uma vez mártir, uma cabana construída com a melhor palha, bem no local onde falecera, em franca homenagem à pessoa que revelara o poder dos deuses aos homens.
- Como não tínhamos percebido isso antes? – questionava-se na freguesia.
Sol e lua, agora reverendados como deuses, passaram a receber oferendas e preces. Ao longo do tempo, rituais foram se perpetuando e se formalizando. Nada era considerado mais divino do que erguer uma cuia cheia de água ao céu e repetir as mesmas palavras da anciã: ‘Nossos bons protetores, deuses da nossa origem, do nosso destino e da nossa sina, recebei tudo o que possuímos e fazei com que esse cadinho se multiplique, mais e mais, para que possamos viver em paz os nossos desígnios’.
Pessoas mais próximas aos rituais foram se firmando como líderes na freguesia. A liderança, outrora vislumbrada nos homens mais corajosos e fortes da comunidade, capazes de vencer os maiores obstáculos físicos e naturais, passou a ser vista naqueles que pregavam os ensinamentos da anciã e os que mais cuidavam dos ritos e das celebrações dos deuses.
Os valores morais dominantes na freguesia foram absorvidos pelo incipiente movimento e as normas pregadas pelos líderes ganharam um efetivo toque de legitimidade: a tez divina. Pouco a pouco, os líderes religiosos foram percebendo o poder que possuíam sobre a conduta dos demais habitantes. Um poder que os assustava, mas, ao mesmo tempo, os imbuía de orgulho.
Um período de franca prosperidade assentou-se na freguesia: as plantações progrediram, os bichos nos currais se multiplicaram e as pessoas aumentaram em quantidade. Os habitantes já não se sentiam condenados, mas, sim, libertos.
Diariamente, quando o sol se encontrava a pino, verticalmente ao solo, os líderes do movimento dirigiam-se aos transeuntes defronte da cabana construída em homenagem à velha e lhes pregavam os bons costumes e valores, realizando rituais em homenagem aos deuses:
- Nós somos como os vaqueiros que regem o gado. Vós sois o nosso gado. Quando o vaqueiro rege os bois e as vacas de forma correta, o gado prospera – afirmavam os homens que cuidavam da religião.
- Meu senhor, o que são os pontos brilhantes no céu da noite? – perguntou uma criança.
Sem saber o que responder, o vaqueiro do gado humano dirigiu-se discretamente aos seus companheiros, também líderes do movimento, em busca de uma cola.
- Não sei o que dizer – cochichou – esse povo pergunta cada coisa esquisita. O que eu respondo?
- Inventa alguma resposta! – disse-lhe o seu colega.
O vaqueiro então retornou à criança, que esperava ansiosamente uma resposta no meio de uma multidão de pessoas, e, sem titubear, doutrinou:
- Quando morremos, o nosso corpo é comido pelo chão, mas a nossa inteligência e os nossos sentimentos não morrem, eis que são dissociados do nosso aspecto físico. Eles viram um pontinho branco brilhante no céu, que reflete a nossa antiga existência. Ficam ao lado do sol e da lua, testemunhando os acontecimentos daqui de baixo e reportando-os, detalhadamente, o que for relevante. São ajudantes dos deuses. São as estrelas! Vejam aquela mais forte, ao lado da lua. É a velha anciã, a sua colaboradora-mor.
- Todos os homens viram estrelas quando morrem?
- Sim! Mas decerto é que os homens mais virtuosos se quedam mais perto dos deuses. Olhem para o céu! Há estrelas distantes e apagadas; outras, no entanto, brilham fortemente. Seja virtuoso e estará perto dos deuses, brilhando muito!
- E qual a receita para a virtude?
- A virtude pode ser alcançada por todos, desde que obedeçam aos valores básicos ditados pelos deuses. Número um: agradeça a vida aos deuses, todos os dias, com uma cuia cheia de água erguida ao céu. Número dois: peça desculpas pelos seus erros. Número três: jamais traia os seus companheiros. Número quatro: ame a sua família, principalmente a sua mãe...
- Família? Tenho escutado essa palavra ultimamente... O que significa?
- Os homens não são isolados e nem independentes entre si. Veja os outros animais. A vaca protege os seus filhotes e lhes dá leite. Assim como são os animais, são os homens. Vocês saíram do ventre de uma mulher. E só quem já pariu sabe a dor que é botar um homem para fora do corpo. Nós somos sementes que germinaram na barriga de uma mulher, e crescemos, crescemos, até termos força para vivermos sozinhos aqui do lado de fora. O amor de uma mãe evidencia-se pela dor e pelo sacrifício que é deixar um bebê crescer dentro de si e depois colocá-lo para fora. Essa dor deve ser reparada. E dor apenas se repara com amor. Amor do filho à mãe que lhe colocou no mundo, e aos irmãos, que são da sua mesma estirpe. A família é a união de uma mãe e dos seus respectivos filhos, acolhidos por um homem mais velho que satisfaça os desejos dessa mulher, quando estiver fora dos dias de sangue, e dê provimento às necessidades de seus filhos. Cada um tem o seu papel na família, que deve ser cumprido com zelo e amor.

E assim sucedeu durante anos, décadas e séculos, quiçá milênios. Os líderes da religião tornaram-se chefes da comunidade. Passaram a ditar os valores, as normas e a decidir as sanções para os membros recalcitrantes. Líderes e liderados, vaqueiros e gado, chefes e súditos: uma hierarquia em nome e a serviço dos deuses. Religião e poder celebraram, a partir de então, uma duradoura união entre si, capaz de ensejar infindáveis, frutíferas e medonhas conseqüências.
[continua...]

quarta-feira, 4 de julho de 2007

14º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (IV)

Entoe as trovas
perante as trevas!
Cante a morte e
poetise a água que cai do céu!
Alguns morrem para vida dar;
outros morrem para evidenciar
as falsas verdades em que teimam os condenados acreditar.

E depois do silêncio-estático,
do silêncio-mudo-ensurdecedor
perante as verdades
(sim, as falsas verdades!)
da velha que jazia no barro
(do barro veio e ao barro voltará),
para o concerto da cena mítica encerrar,
os loucos,
aqueles engaiolados-despirocados-surdos
insanos-desmentidos-perdidos,
desvencilhados das amarras do ferro e da vida,
em fila indiana,
os braços erguidos (oh!),
a água caindo,
o caminho em direção à velha.
Ao ponto:
o corpo rígido erguido ao céu.

Entoe as trovas
perante as trevas!
Cante a morte e
poetise a água que cai do céu!

E saem os três aloucados,
recitando verdades ininteligíveis,
carregando a morte,
os olhos ainda abertos,
a água caindo forte,
a sina do cumprimento da verdadeira missão diplomática da freguesia:
entregá-la aos deuses do céu.
Em tempo.

sábado, 30 de junho de 2007

Revire a volta. Revira e volta.

Estou diante de um labirinto. Bela metáfora. É, insiro-me em uma bela ilusão. Métafora pobre à vida que me envolve. Vivida no cotidiano construído pelo ente que vive em cima de mim, aquela velha escola acoplada ao meu corpo. Chamam-na de cérebro. Estranho. Estranho como o que é nosso é tão distante, é tão...outro! Metáfora aceita, diz o código binário inserido em um córtex qualquer. É lá que sonho, não com vales, árvores e nuvens escondidas pelo sol, mas com o labirinto que é a vida.

Abro a primeira porta e sigo adiante. Espero encontrar, no âmago de minha caminhada, uma definição a tudo que me pertence. Ou talvez a tudo que quero pertencer. Nada na vida envolve articulações próprias, deveres próprios até. O sentimento, a luta, o perdão, são imagens queridas pelo corpo que nos reveste. Nada disso é nosso. Veja só, até o psicopata(aquele ser desprovido de sentimentos, como os definimos) depende do outro para fazer fluir suas próprias investidas. Tudo bem, é diferente. Ele usa os outros como instrumentos de seu repertório. Mas em nosso teatro, raramente somos os personagens principais. Vivemos em constante medo de sermos deixados para trás, mas sempre no cenário de outro. Quero ser personagem principal! Sem dúvida, mas no roteiro escrito por quem conquista a minha audiência

Por isso invisto no caminho curvilíneo. Não por parecer o mais propício. Mas talvez por ser o mais próprio. Pensando bem, talvez por ser o mais distante daquela sabedoria induzida pelo senso comum: o reto. Seguir em frente, quase sempre se vinculou ao caminho reto. Reto de certo, de não afetado. Devo lembrá-los que há perfeição em um ciclo? Seguir curvas e tomar desvios faz parte do significado que cunha minha trajetória. A trajetória que se completa com emboscadas e cercas eletrônicas, com atritos que definem as cicatrizes do meu corpo interno. Sejam elas significativas para outros ou para mim. Não nego, estou diante de uma decisão e escolho a trilha menos viajada. Apego-me ao perigo. Sim, esse é o escopo final de toda felicidade, não é? Afinal, nada mais profícuo que seguir o passo pelo tato desconhecido.

Claro, isto é loucura. Loucura das minhas. Luvas refringentes seria a escolha, não? A solução é colocar-me diante do desconhecido e permitir que ele me consuma. Só assim para sentir o repelente calor da existência. Sim, o tato do outro pode me ser útil. Desde que me pareça familiar, interativo, introspectivo, aliás. Todo caminho humano é diferente, toda afirmação humana é diferente. Por isso mesmo que não entendo a existência da palavra “Todo(a)”. Maldita linguagem. Impede coerência ao pensamento lúcido. Nada mais infeliz que um ser idôneo. A idoneidade se confunde com a perfeição. A perfeição se confunde com o reto. O reto não se desenvolve. Ele só segue, e segue, nada mais, nada menos.

Portas, novamente. Já não me importo em explicar como é sua aparência. É como outra qualquer. Não há porta certa, então por que enfeitar uma com pensamentos inúteis ao processo de seleção? AH, aquela porta linda, feita de mármore bem lixada, vermelha como o coral mais belo, lisa como a pela da mais amada. Palavras de um estético egocêntrico! Como se suas escolhas fossem mais belas que a do outro. Talvez aí esteja a felicidade: Embelezar o que não é belo por definição. Até porque a única coisa bela por definição é o amor. E ele o é justamente por transformar belo o que nunca foi, o que nunca será. Eu percebo, eu sinto, eu sei que escrevo palavras desconcertantes. Acredito que há, nelas, significados aceitos por meus leitores. Escrevo palavras. Entôo sentidos maléficos ao conservador. Acredito que há, neles e nelas, significados ocultos, perceptíveis somente ao olho perspicaz, ao perdido no labirinto da linguagem, como eu. Escolho a minha porta e sigo minha sina.

Lembro da escada em minha casa. Nela, as escolhas são mais simples. Desço, subo. Subo, desço. Mas andar em torno do desconhecido, tomando riscos a toda escolha, parece-me mais recalcitrante, no bom sentido da palavra. Não acha bom sentido para ela? Então precisas buscar mais uma vez. Se achar, verás meu caminho aberto aos seus olhos. Discordância, resignação, ao invés da réplica instituída.

Lá está ela, linda como nascer, estrondosa como a morte: a minha escolha. Ao fim de meu raciocínio prévio, decido-me pelo precipício e somente assim termino minha estória da forma desejada.

Desce, sobe, sobe desce. Deleito-me ao entender a insegurança diante de uma porta. Se não sair do labirinto, aqui ficarei, eternamente. Se não subir a escada, simplesmente não a subirei. A importância do escolher uma coisa tão banal como uma porta me espanta. Ao mesmo tempo, porém, me glorifica. Como a glória causa repulsa aos medrosos. O feito heróico se respalda no risco envolvido na solução. Quando não há risco, não há existência plena. Há o medo de se viver, de tomar decisões e de sair do labirinto.

domingo, 24 de junho de 2007

12° Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (III)

o corpo caído
os olhos abertos
cor vermelho-sangue
a boca espumando
a face roxa
os membros rígidos

morte:
a velha conhecida
dos condenados à vida.

mataram a velha;
matou-se a velha;
matou a velha:
ele.

vento para bulir
vento para levantar
a existência

move a terra
levanta as saias
e arranca as palhas e as telhas das casas

e fogem todos
buscando a vida
que se move atordoada
enlevada pelo vento

e correm todos
como formigas perdidas
desordenadamente
a tentar resguardar
o que já não possuem

tudo rodopia
alcançado pelo redemoinho
um espiral de verdades:
dúvidas, perguntas e certezas.

certezas?
precisas das certezas?

depois o silêncio
o silêncio-surpresa
o silêncio-espanto
o silêncio-medo

ensurdecedor

não acreditas no que vês?
sente a água repousando
inquietamente sobre o teu corpo.
sente a água caindo do céu como balas,
perfurando a tua mente.

a velha
morte
caída
os olhos ainda abertos
tinha razão.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Chão de terra

Pertence
À escuridão, o céu azul
À entonação, o ar de sério
E ao estilete do faisão,
A moça alegre.

Estende
De um lado ao outro a semelhança
Que entre um olho e outro se desavença
E encontra no distúrbio mental
A chave para a alegria

Critico
O sol nascente que não espanta
O peregrino iludido pelo carinho
Que, como nave espacial,
Só existe no horizonte

Receio
De dor ao longo dos tempos
Da falha entre comunicados
Anterior ao pé-rapadura
Estridente em toda sorte

E saio
Sem ter que falar nada
Redigindo palavras
Palavras circunstanciais
Para meu delírio pessoal
E do leitor
Leitor habitual.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

10º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (II)

‘Porém, nada aconteceu no primeiro dia subsequente, muito menos no segundo. Nenhum sinal de vento, de nuvem ou de chuva apareceu. Não obstante, a velha passava horas ao lado de sua oferenda, declamando frases em linguagem desconhecidas, cuja mensagem ninguém conseguia entender.’
- Está louca e caduca esta velha! Não dêem importância ao que ela faz! Deixem-na sozinha. Ela só quer chamar atenção.
‘Passou o terceiro dia e nenhuma novidade ocorreu.’
‘No quarto dia, uma criança que havia nascido há menos de duas semanas faleceu desnutrida. Sua mãe não produzira leite materno suficiente e os animais do pasto, há tempos, já não o produziam. ’
‘Era costume, naquela freguesia, colocar os corpos dos falecidos num pote enorme de cerâmica que eles mesmos produziam com argila que extraiam do solo. O pote era redondo, no formato de um globo, onde o corpo era disposto sentado, as pernas do falecido eram cruzadas e as mãos eram colocadas entrelaçadas sobre as suas pernas.’
‘O corpo era colocado nu dentro do pote. Também se retiravam dele todos os apetrechos materiais (fivelas, correntes, colares, sandálias). Quando o falecido era um homem, e tivera sido um bravo destemido dentre os demais, arrancavam-se todos os dentes de sua arcada, os quais eram utilizados para a confecção de um colar a ser usado por seu filho mais velho. Ter um colar de dentes do pai era a obtenção de um considerável status entre os condenados. ’
‘Após todo o ritual de costume, o pote era lacrado com uma tampa de cerâmica, e posteriormente levado a uma gruta que havia perto dos paredões montanhosos, onde era finalmente enterrado.’
‘Naquele dia, enquanto condenados mais próximos da criança falecida prepararam o seu corpo, chorosos, para colocá-lo no pote, escutaram-se gritos da velha anciã, radiante de felicidade, ao perceber que não havia mais água na cuia da sua oferenda:’
- Estão vendo! Escutaram-nos! Escutaram-nos! Não tardará e cairá chuva.
‘No entanto, aquela profusão de alegria em meio a um ar de profunda tristeza e melancolia foi bastante para ensejar a revolta dos moradores da freguesia, irados com o desrespeito da velha anciã, relativamente à dor pela morte do bebê.’
- Essa velha não respeita nem a dor pela morte do meu filho! – reclamava o pai da criança.
‘No entanto, a velha não parava de gritar. Correu por todas as ruelas da freguesia, anunciando a boa notícia, prevendo chuvas e mais chuvas, períodos de prosperidade, o fim das dores e da morte. A inquietação da anciã foi suficiente para que, flagrantemente raivoso, o pai da criança, como num rompante, se retirasse abruptamente do lugar onde estava, ao lado do corpo do filho, buscasse um machado nos fundos do casebre e se dirigisse ao encontro da velha, que, naquele momento, encontrava-se novamente no descampado, ao lado da oferenda.’
‘O homem caminhou arquejante ao encontro da velha, debaixo do sol a pino. Alguns moradores da freguesia vieram logo atrás dele, suplicando que se controlasse. A velha estava agachada ao lado da cuia vazia, de costas para o homem. Porém, como se pressentisse a sua chegada, tornou a virar abruptamente para ele antes que a alcançasse com o machado esticado em sua direção, em inegável tom de ameaça.’
‘A velha levantou o olhar vagarosamente e fitou os olhos vermelhos e suados do homem. Virou o olhar para o machado, sujo de terra e de barro, e tornou a olhar o chão, como se estivesse indiferente à ameaça.’
- Se estiveres aqui pelo incômodo que sentes pela morte do teu filho, te garanto que ele agora está em um lugar melhor.
- Que tu sabes desse mundo mais do que eu, hein? És tão humana quanto eu e se digna a ficar dizendo esses impropérios.
- Sou tão humana quanto tu és, mas isso não implica que eu veja o mundo da mesma forma que tu vês. Designo para as coisas sentidos completamente diferentes do que tu designas, e nem por isso sou melhor ou pior do que você.
- És uma louca!
- Qual o teu parâmetro para a designação da loucura? Basta alguém dizer uma coisa que não entendas ou que não concordes para atestar a sua loucura?
- Que eu não entenda? Estás a me chamar de burro?
- Não. Estou afirmando que és um ignorante.
‘As mãos do homem seguraram mais fortemente o machado.’
- Vais me matar?
- Já que és tão inteligente e superior, responda-me: o que acontece se eu te matar?
- Mata e verás!
- Estás me desafiando.
- Tu interpretas o que falo à tua maneira. Designas o sentido que pretenderes – e levantou-se – mas se queres saber do teu filho, olhe para o céu, durante a noite, e verás.
- Estás me fazendo de palhaço!
- Estou abrindo os teus olhos para possibilidades evidentes que não queres enxergar.
- Demoralizas-me na frente de todos!
- Apenas falo-te a minha verdade.
- A tua verdade?
- Adota-a se te for conveniente.
- Estás a me desafiar!
‘A velha anciã, visivelmente entediada, olhou para o céu e ergueu as mãos, pensando algo aparentemente indecifrável para os demais. O homem, irritado, jogou o machado na terra e a segurou pelos braços.’
- Teu filho estás vendo isso.
- Meu filho está morto e tu não me deixas sentir a dor de sua perda em paz.
- Foi apenas mais um que morreu. Morrerão ainda muitos. Mas a chuva... A chuva virá. Os deuses me escutaram.
- Cala-te! Não há deuses! Não há deuses! Estás louca! Não virá chuva nenhuma por esses dias. Não vês que não há sequer nenhuma nuvem no céu?
- Choverá hoje! Ainda hoje!
O homem passou a segurar fortemente a velha pelo pescoço.
- Não choverá e não há deuses! Estamos sozinho nessa terra!
- Choverá! Choverá! – a pressão das mãos do homem no seu pescoço começou a impedi-la de falar – Cho...
- Então, se há deuses, que eles impeçam que tu morras. Não és a mais inteligente de todas? Não és as maior crente dessas falsas verdades? Ele não iriam permitir tal perda!
- Choverá! Chov...
‘A velhinha, já fraquejando, repetiu por diversas vezes ainda a mesma frase. Era grande a platéia que testemunhava a cena, paralisada, atônita, silenciosa. Ninguém se atreveu a interferir, tão forte era a raiva do homem que agredia a velhinha, num acesso de ira.’
‘A feição da anciã, em nenhum momento, alterou-se. Mesmo fraquejando, sem ar, manteve o ar desafiante, absoluta em suas convicções. Em nenhum momento esmureceu. Seu rosto foi avermelhando-se e, no último suspiro, ainda reiterou:
- Choverá.
‘Caiu subitamente no chão, os olhos ainda abertos. O espanto foi geral. No entanto, antes que qualquer pessoa pudesse exclamar algo relativo ao evento prontamente consumado, ou ao menos antes que o homicida pudesse ter consciência e certeza da morte da velha, uma forte rajada de vento, vinda não se sabe de onde, supreendeu a todos, formando um redemoinho que se iniciou pequeno, mas foi crescendo, crescendo, envolvendo o barro da terra e absorvendo tudo o que encontrou pela frente. Atordoada, uma criança olhou para o céu e constatou, espantada:’
- Nuvens cinzas!
‘Todos olharam incrédulos para cima. O céu, antes azul e seco, transformara-se em uma abóboda de cinzas nuvens.’
‘Poucos minutos depois, ante o gélido e estático espanto de todos, começou a chover torrencialmente na freguesia.’
[continua...]

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Devaneio robusto

Hoje fui inundado de perguntas. Nada me traz mais aflição. Bastam as perguntas montadas e remontadas em minha própria cabeça. Preciso escrever os acontecimentos a fim de refletir melhor sobre elas. Róbson não larga do meu pé, e, continuadamente me incomoda. Bom, relatarei aqui o diálogo que tive com ele, anteriormente. Acredito que nele estão inseridos todos os acontecimentos desse dia repleto de tréguas.

Róbson, estive pensando. Comer pão, ao lado do meu cachorro, me faz bem. Como explicar tal sentimento? Ah, isso já é pedir demais. Não estou aqui para lhe convencer a comer ao lado do seu cão. Só o digo a título de argumentação. Não quero comer ao lado de minha irmã. Pronto, ponto final. Prefiro comer ao lado de meu cachorro. A vontade foge de algum tipo de escárnia, ou aversão à figura de minha irmã. Não quero ofendê-la. Mas você a ouviu: Por que não comes ao meu lado? E tenhas a dignidade de me responder verdadeiramente. Assim, o fiz. Então por que a preocupação? Por que a angústia que estás sentindo? Se não é, pois, eu que lhe disse tudo. Acredite em mim.

Estou, na verdade, cansado desse formalismo necessário à comunicação. Argumento por argumento, palavra por palavra, lágrima por lágrima. Não. Esquece o que eu falei. Esse último que invoquei nada tem a ver com a pobre da linguagem. Ou pelo menos com seus aspectos formais. Maldita linguagem essa, que dita meus pensamentos e, ao mesmo tempo, restringe a expressão do que sinto. Como gostar de algo assim? Prefiro beijar, tocar, abraçar o mundo, do que falar sobre ele. Até porque falar implica abrangência do mundo alheio, como o seu, por exemplo. Não ria de mim. Estou a pensar, constantemente, nesses interlúdios, nessas pausas homéricas em que me perco dentro do meu próprio universo. HA, um louco consciente.

Sim sim, rimos juntos alguns momentos. Voltemos, porém à angústia inserida dentro do contexto. Aliás, essa interrupção destruiu toda construção ideológica de meu pensamento. Regresso inútil, parar e solicitar entendimento. Tudo depende dos nossos tremores. Você entendeu, diário, caro. Ser vivo, significa ter medo. Medo da morte, incessantemente ao nosso lado. Lembrando-nos da vida que temos. Jogue-me em cima dessa dama. Quero encontrá-la para agradecer, por todo sentido que ela possui e que possuirá em minha vida. Esboçamos uma compreensão, através de nossos medos perante ela. Aliás, que seria um significado sem o término do mesmo?

Pois então, vamos expandir minha colocação. Quero trazer vossa atenção de volta ao meu dia. As mulheres. Ah, sim, as mulheres. Como reprimem minha condução argumentativa. Queria conduzi-las à minha forma de pensar e elas percebem. Isso deve ser o problema. Minha irmã não concebe a idéia de ter vontades diferentes das existentes nos mortais comuns. Aí novamente, a minha dama. Morte, o ser é mortal, por todos sermos mortais, em algo não nos diferencia um do outro. Isso dá ensejo a uma contínua busca pelo enquadramento ideal da condição humana. Pois bem, ela se baseia na morte.

Como todos, então, minha pobre irmã reprime tudo o que acontece em minha mente por considerar minha linha de argüição diferente. Por exemplo, ousa-se a dizer que Róbson não existe, quando o vejo a todo o momento aqui, na minha frente. Quer me convencer, a coitada, mas carece de algo imprescindível para o feito: a lógica. Lógica interina aos falseamentos e construções argumentativas. Se somente soubesse o quanto lhe falta isso.

Ah sim, Róbson, estou de acordo. Existem coisas saudáveis à mente que não me remetem ao princípio lógico. Mas não estou falando disso. Refuto tal argumento por isso. Ele não cabe em meu sistema, nesse exato momento. Como assim que sistema? No sistema criado em minha cabeça para compreender seu fala, minha fala, a fala de minha estúpida irmã, durante o rastreamento vital. Poxa, não me faça rir. Não estou com a pretensão de dizer que toda vez que falo com alguém, penso num critério que devo usar a fim de esboçar meu pensamento. Mas quero dizer que há um pretexto por trás de toda conversa. Que esse seja convencionalmente estabelecido ou mesmo de forma espontânea, não importa. Mas há critérios pré-estabelecidos para o entendimento de uma simples frase. Ele não precisa ser unívoco, mas imprescinde de certos requisitos. Esses requisitos, em sua maioria, são lógicos. Como a lógica abrange uma quantidade absurda de argumentos, formulo meu próprio sistema. Assim, só argumentos plausíveis com minhas idéias são válidas.

O problema está justamente em transpor os meus indícios de realidade ao outro. Tenho ânsia por convencer. Ser justo para todos, por ditar o que é justiça em meu sistema. Afinal, não é assim que Deus funciona? Cria um mundo próprio, com regras próprias que ele, como detentor do sistema, dita. Se ele dita as verdades do sistema, é impossível que Ele minta. Acho que finalmente me entendeu, Róbson, quero que me entendam pelo meu valor. Pela minha santidade ecumênica. Se não eu, pelo menos minhas idéias são dignas de louvor, e, em especial, meu sistema. Acredita em mim? Mas não acredita que sou digno ou de que é isso que almejo? Finalmente, Róbson me compreendeu. A questão do dia, porém, fica. O convenci?

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Corrente do Pensamento

Preguiça. Movimento contrário ao trabalho. Por isso me dou tão bem com ele. Lá no fundo da paixão.... Pêra aí! Música. Isso é uma música! ‘Lá no fundo da paixão’. Bom, se não é, deveria ser. Se não é, parece ser. Enfim, preguiça. Estou deitado, faz horas. Não durmo. Não, não durmo. Mais do que acordado, estou ciente. Paro, penso, e uma vozinha dentro de minha cabeça diz: “Levanto? Durmo?” Nunca chego à conclusão. Triste, triste a imagem da instituição da preguiça.

Nossa, quanto “da” na última frase.

Serei lembrado, por poucos, mas serei lembrado por ser da maneira que sou. Essa maneira aprova a preguiça. O sentido aristotélico, você diz. Hum, talvez. Nunca li Aristóteles. Para que ler o que não me interessa? Para isso que servem empregos, universidades, etc. Não me sinto a vontade quando obrigado. Ao invés, fico pensando, delirando, sonhando com o que pode ser. Nunca vai ser mesmo. Pelo menos tenho tempo para pensar.

Ah sim, isso me lembra uma coisa. Já amei. Sim, sim, já amei. Sou roteirista do cotidiano. Logo, amei. Quem não se apega, não se entrega. Quem não se entrega, leva consigo o peso da ubiqüidade: deve estar a todo instante em vários lugares. Fixar-se, e prender-se, é permitir se apaixonar. Não sou fã do antagonismo: uma pessoa, vários lugares. Sim, portanto, amei sim. E como! Para falar a verdade verdadeiríssima, sempre vou amar. Amá-la. A má lanterna, que utiliza toda energia para iluminar meu caminho escuro. O problema está na escolha do caminho. Eu escolho? A luz escolhe? Tenho escolha? Alguém escolhe? Acho que sim. Prefiro me sujeitar às escolhas de outro ao me deparar com a incerteza proveniente da minha escuridão.

Como é que é? Está determinado. Deixe-me em paz por agora, labirinto da mente. Desculpe. Travei conflito com minha cabeça. Ela quer pensar. Eu quero sentir, e me unir à cama. Sinto-a. Amo-a. Sua pele entorta minha visão, recobre todo meu pavor, e enche-me de ilusões. São sonhos. Abertos, sorrindo, livres para me espantar, mas nunca irremediáveis. Pano branco, azul, lápis de cera. Ela me apóia em todo momento imprescindível à existência. Ela me apóia. Ela me sustenta. Mesmo quando não a agrado. Isso é o amor. Fases distintas, florescendo raras intervenções.

Pois é. Amei uma mulher. Faltava-me preguiça à época. Dizem que com o tempo, acostuma-se com o indivíduo. Nada mais lhe é novo. Nada mais é novo para mim. Assim, o ser humano se afasta. Busca o novo. Encontra novo. Novo, vira velho, busco outro novo. Mas o meu amar....Meu amar surgiu do nada. Aliás, surgiu do álcool. Surgiu da tentação produtiva, do nexo causal desfeito de conseqüências. Talvez por isso, nunca me cansei. Aquele cheiro. Aquele cheiro. Ele era sempre novo. Sempre envolvente, sempre alarmante. “Beija-me,” ele dizia. “Esconda-se em mim,” salteava o som ao meu nariz.

Perdia noção de minhas regras. De meus temores, pudores, e todos os outros “ores”. Só queria amar. Amar, amar. É, é assim. A mar. O mar é aquele negócio gigante, cheio de vida, cheio de morte, manso, feroz, impelido pelo vento, desgarrado da vontade humana. A mar, por sua vez, encontra-se no bojo do universo e enfeita meus pensamentos, minhas viagens. Somente um ser feminino poderia fazer tanto. O espírito de a mar está repleto de saúde, e resplandece isso a todo momento. Dica dos filósofos: Procure saber o significado literal da palavra, aconchegue-se nas estruturas lingüísticas para decifrar o verdadeiro intuito por trás do significado. A mar, logicamente, é o feminino de o mar. Claro, não é preciso estudar muito para ver isso. Por isso mesmo que percebi.

A mar, então, devolve-me toda vontade, e extradita minha preguiça. Essa moça, esse mulherão, me concebe no mundo. Joga-me para fora de meu íntimo, e me acaricia com palmas de veludo. Sou grato por isso. Mas não quer dizer que não goste da preguiça.

terça-feira, 12 de junho de 2007

7º Dia: Alegoria do caldeirão fervente (I)

‘A nossa pele dos pés era rachada e ferida, como se tivéssemos andado descalços por toda aquela imensidão de terras, tão desconhecida, da qual não sabíamos nem o começo nem o fim. Existíamos. Simplesmente existíamos. Não sabíamos a nossa origem e nem o nosso destino. Vivíamos ali, a esmo, naquela terra quente e seca, onde o vento só chegava de vez em quando. Alguns até desconfiavam que ali seria o fim. O fim. O fim do mundo.’
‘Partir? Fugir? Partir era não voltar jamais. Alguns tentaram e, infelizmente, não soubemos o que lhes restou. Não resistiríamos: argumentavam isso, sempre. Havia elevados de terras enormes por todos os lados e escalar os paredões das montanhas era tarefa praticamente impossível para qualquer um de nós. Sentíamos como se estivéssemos no fundo de uma cratera, dentro um caldeirão, flutuando num caldo de atmosfera. Um caldo fervente, cujo calor extraía todos os nossos líquidos, fazendo com que nós também fervêssemos. Fervíamos de agonia. Viver era (é?) agoniante.’
- Deixa estar – sempre balbuciava uma anciã solitária que vivia entre nós, os condenados – deixa estar.
‘Entre partir ou entre ficar, entre morrer ou entre viver, entre se arriscar ou entre se conformar, preferíamos nos entregar à nossa prisão sem celas e sem paredes.’
- Morreremos todos do mesmo jeito! – argumentava a velha anciã – e duvido de que lá do outro lado seja melhor do que aqui.
‘Das montanhas caía um fiapo de água. Tentavam em vão explicar a origem daquela água, os motivos daquela conformação, mas não havia consenso. Alguns diziam que era o acúmulo da água que caía do céu.’
‘Sim, caía água do céu! E nos espantávamos com esse fenômeno. Vez por outra, o azulado do céu se transformava numa branquidão acinzentada medonha! E começava a cair água, às vezes forte, às vezes fraca, às vezes torta, às vezes reta. A água que caía do céu era a nossa alegria. O tempo esfriava. Era como um refresco para os nossos corpos tão acalentados e torrados pelo calor.’
‘Olhar pra cima era o nosso único entretenimento. De dia, o céu tinha um tom azulado mais claro e o sol forte nos iluminava. As crianças adoravam descobrir formatos de desenhos nas nuvens. Viam bichos, dragões, pessoas, reinos e castelos. O tempo passava, as nuvens mudavam de forma, e já podíamos perceber que elas imitavam outra coisa. De noite, aparecia a lua, o céu ficava na penumbra e podíamos ver vários pontinhos brancos brilhantes.’
‘Tudo aquilo era tão lindo quanto desconhecido. Era, para nós, a imagem da perfeição. O céu deveria ser o melhor lugar de todos. Afinal, um lugar onde havia tanta água – capaz de transbordar - não poderia ser ruim.’
- A gente vive das migalhas do céu – reclamava a velha anciã.
‘Por algum tempo, passava meses sem cair nenhuma gota de água do céu. Era a desgraça. As plantações morriam, os animais morriam, as pessoas morriam. Já éramos poucos e com o passar do tempo a quantidade dos condenados que morriam superava, em número, a quantidade dos que nasciam.’
- O céu está ficando escasso de água – especulavam alguns.
- Eu acho mesmo é que por lá estão com raiva de nós – afirmava, solitária, a velha.
‘Afirmações reiteradamente repetidas tornam-se verdades absolutas. E o sol, que parecia irradiar mais calor nesses períodos de seca, contribuiu para que as pessoas começassem a concordar com a velha anciã.’
- Nunca vi algo assim. Vocês são burros? O calor que o sol nos manda está mais forte! Não mandam mais vento e nem água. Estamos morrendo! Estamos morrendo! Temos que fazer alguma coisa! Se estão nos tratando assim, é retalição! Fizemos alguma coisa que lhes desagradou!
- Mas o que poderíamos ter feito? – indagavam todos.
- Não sabemos. Talvez nunca saberemos. E pra que sabermos? Ficar remoendo essas feridas não tem sentido. Temos é que pensar em alguma solução!
- Poderíamos enviar uma comissão ao céu, e conversarmos, negociarmos com os homens que lá vivem! Tenho certeza de que, subindo por essas montanhas, chegaremos mais perto deles, e só assim eles poderão nos ouvir.
‘A velha riu ironicamente:
- Burros! Burros! Burros!
‘Mas a maioria dos condenados acatou a idéia do homem. Iniciaram as tratativas da viagem: a grande viagem. Elegeram-se cinco pessoas que integrariam a missão. A idéia inicial era que os mesmos fossem chefiados pelo próprio homem que dera a idéia da viagem. Porém, ele mesmo se recusou, por motivos óbvios, alegando que não teria condições físicas de enfrentar a viagem.’
‘Posteriormente, cada uma das outras cinco pessoas, pelos mesmos motivos óbvios da recusa do eventual chefe da missão, desistiu da viagem. Diante do imbróglio, alguém teve a idéia, por fim, de enviar na missão três pessoas da freguesia que viviam presas numa jaula, por julgarem os demais que não regulariam bem da psiqué.’
- Estão querendo se livrar dos doidinhos! Estão querendo se livrar dos doidinhos! – ironizava a anciã.
- Deviam colocar a velha anciã para chefiar a missão! – resmungavam alguns.
‘No grande dia designado para o início da expedição, instruíram os três homens, explicaram-lhes o caminho a tomar e lhes deram alguns mantimentos. Estava inaugurada a primeira grande missão diplomática da freguesia!’
‘Realizadas as instruções e os discursos, deram ordem aos três homens para que iniciassem a viagem. Mas eles nem se mexeram. ’
- Vão! O caminho é por ali! Não ouviram?
‘Esqueceram os condenados de que aqueles homens talvez nem entendessem o dialeto falado na freguesia. Os três homens demonstravam-se indiferentes, nem ao menos tentando entender o que lhes falavam.’
- Vão! Corram!
- Eles não vão correr. Eles não vão sair daqui. É fato. São loucos! Loucos! Débeis! Não entendem o que a gente fala – resmungava a anciã, que observava a cena, a gargalhadas, ao fundo. – deviam ter escutado a velhinha aqui. Mas a velhinha aqui não serve para nada. Jamais nenhuma missão conseguirá estabelecer alguma conversa com aqueles que vivem no céu. É óbvio! Lá não vivem homens, nem bichos, nem plantas! Jamais nos escutarão desse modo. Lá deve viver algo maior, sublime e tão perfeito quanto a beleza das imagens que vemos quando olhamos para cima. Por acaso já viram homens passeando pelo céu? Não, não viram. E não viram por um único motivo: homens como nós, lá não existe. Existem o sol e a lua. Eles são redondos assim por serem como olhos que testemunham tudo o que fazemos. E quando lhes despertamos a ira, não nos jogam mais água, nem vento e ainda aumentam o calor, pois sabem que esses elementos são essenciais para as nossas vidas. Eles são nossos protetores mas, como os bons pais, repreendem os filhos quando fazem malcriações.
- Essa velha está louca! Louca! Deveríamos prendê-la na jaula junto com os demais – gritavam alguns.
- Então vamos lá, sabichões! Subam as montanhas e tragam a chuva! Eu, por outro lado, me comunicarei com eles de outro modo! Falarei o que eles querem escutar. Irei fazer uma prece aos nossos protetores, aos nossos bons pais! Tenho certeza de que eles nos escutarão dessa forma.
A velha anciã, levando um pote bem raso de água coberto por folhas de louro, dirigiu-se lentamente a um descampado que havia ao lado da freguesia. Todos a observavam calados, atônitos, vislumbrando a velha como a personificação da loucura.
Ela alcançou um ponto mais elevado e ergueu o pote de água aos céus e recitou lentamente:
- Nossos bons protetores, deuses da nossa origem, do nosso destino e da nossa sina, recebei tudo o que possuímos, esse humilde resto de água, e fazei com que esse cadinho se multiplique, mais e mais, para que possamos viver em paz os nossos desígnios. Perdoai as nossas falhas. Estamos aqui reconhecendo as nossas culpas!
‘A anciã deixou o pote de água no solo e voltou plácida à freguesia, onde os homens riam da sua atitude, chamando-a de louca.’
- E ai daquele que mexer na cuia de água que eu mesma levei! Eu o amaldiçoarei!
‘Embora zombassem e duvidassem da velha anciã, todas as pessoas, no silêncio das suas intimidades, desejavam, verdadeiramente, que aquele ‘teatro’ surtisse algum efeito. Nas horas subsequentes, muitos ficaram olhando para o céu, na esperança de que se fomasse alguma nuvem que anunciasse a chuva.’
[continua...]

sexta-feira, 8 de junho de 2007

6º Dia: Dos temposde cólera (III)

Dia após dia, fui melhorando da febre e da fraqueza, dormindo cada vez menos, levantando-me da cama uma vez por dia para comer e me assear. Vesúvia encontrava-se visivelmente abatida, mais magra, não obstante não escondesse um certo contentamento pelo meu restabelecimento.
- Trouxe um livro novo para você começar a ler nesta manhã. Dom Quixote! – surpreendeu-me ela um dia, sorrindo carinhosamente, como nunca havia feito comigo.
- Meus olhos ainda doem.
- Se não tiveres determinação, jamais se levantará desta cama.
A idéia de ler um livro me fizera relembrar, inevitavelmente, de Ceci. Mas era preciso que eu me acostumasse à idéia de que Ceci se fora, não sabia para onde. Aliás, não sabia nem se Ceci algum dia estivera comigo. Poderia ter sido fruto dos meus delírios.
- Vesu... E a seca?
Vesúvia olhou para o teto e deu um longo suspiro.
- Morreram muitos.
- Quantos?
- Muitos, não sei ao certo.
- A seca já passou?
- Choveu na semana passada. Foi dia de Santo Antônio.
- Tu emagreceste.
- Foi o desespero, a preocupação.
- Foi castigo, Vesu?
- Castigo? O quê?
- A minha doença.
Mais um longo suspiro.
- Os desígnios de Deus e dos homens são indecifráveis, Pingolim. – silenciou por alguns segundos, pensativa. – E agora deste para entender de Deus?
- Eu estive com Deus.
Visúvia gargalhou da mesma forma que o Deus coronel de engenho gargalhara no meu sonho. Porém, subitamente, ficou séria.
- Esteve com ele? E o que ele te disse?
- Venha até mim.
- E foste? – falou intrigada.
- Eu tentei, mas não consegui chegar até ele.
- E como era esse teu Deus?
- Era um homem.
- Um homem?
Ficamos em silêncio por alguns minutos, os dois cabisbaixos. Vesúvia se levantou lentamente, como se precisasse de muita força para andar. Fitei o Dom Quixote, admirei as gravuras da capa e comecei a ler o livro.
Passei o dia todo em leitura. Mais tarde veio Vesúvia com o mingau de aveia, sempre quente e salgado. Demorei mais que o tempo normal para comê-lo e logo caí na cama, pensativo, ansioso por relembrar todos os meus sonhos e delírios e analisá-los um por um. O sono não tinha pressa.
- Ei! Psiu!
Uma voz estranha, vinda da janela, surpreendeu-me. Denotava um tom nervoso, como se a pessoa tivesse pressa. O cansaço me impedia de ir atendê-la.
- Ei! Você mesmo! Venha até aqui!
A curiosidade me tomou por completo e venceu o meu cansaço. Caminhei até a janela e abri uma fresta da madeira. Era um menino, aparentemente da minha idade, um ar ansioso, muito suado e as roupas sujas de terra.
- Ei! Preciso de sua ajuda!
- Ajuda? Quem é você?
- Preciso de sua ajuda! Agora!
- Ajuda para quê?
- Estamos em guerra!
- Guerra? Que guerra? Não vejo guerra!
- Mas não é preciso que você veja as coisas para que elas existam. É uma guerra silenciosa! Todos sabem, mas ninguém comenta!
- Guerra silenciosa? E as balas, os canhões, os feridos?
- Ai! Você não entende nada mesmo desse mundo! Em que mundo você vive? É uma guerra silenciosa, abstrata! Não vê as pessoas morrendo por aí? Nós, homens, somos bichos, animais, temos instintos. Instintos de sobrevivência. Nessa terra de ningúem, não há recursos para todos. Por isso eles inventaram essa guerra. Estão matando todos que não lhes servem mais. Indiscriminadamente. Matam até com o olhar! O ohar é a arma mais poderosa que eles têm!
- Inventaram uma guerra? Quem são eles?
- O coronel de engenho, ajudado pelos seus capatazes.
- O coronel de engenho! Eu o conheço! Ele não é o...
- Exato! Ele chegou por aqui há muito tempo, com as suas idéias revolucionárias. Ele não era nada, e se tornou o Deus dos homens.
- Não sei... Não vivo no seu mundo! E acho que as pessoas estão morrendo pela seca.
- Seca! Seca! Seca é o que dizem. Seca é ilusão. As pessoas morrem pela guerra! Eu te garanto!
- Não consigo lhe entender.
- Há muito tempo atrás, numa seca muito mais braba que qualquer homem possa ter vivido, quando há meses não chovia neste sertão sem lei, caiu repentinamente uma tempestade tão forte, que a todos apavorou. E em meio aos relampejos, chegou um homem num cavalo branco, forasteiro, um lenço envolto na sua cabeça, da qual se podiam ver apenas os seus olhos, verdes como uma esmeralda. Tazia consigo um baú de madeira, trancafiado por um cadeado. ‘Vêem este baú? Vêem este baú?’, passou a gritar ele no meio da viela principal da freguesia, e não tardou muito para que as pessoas fossem às janelas, curiosas, não obstante a chuva. ‘Vêem este baú? Guardo coisas que jamais vocês viram! Coisas que vão mudar as suas vidas! Para sempre!’...
E o garoto foi descortinando a sua versão para a história do mundo dos homens, como se um cenário aparecesse do nosso lado e eu pudesse visualizar, com riqueza de detalhes, a sucessão dos fatos, a atuação das personagens, a troca dos cenários e até as possíveis reações da platéia (tristes ou alegres) para cada ato da tragédia.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Idéias




Erguida pelo vazio
De quem anda pela manhã sozinho
Na névoa do despedir
Do escuro inovador

Segue em mãos reunidas
No humor da vida retirada
Da pétala representante
Sangrando felicidade

Aos prantos, caminha
Sente sol, sente luz
Encolhe sua vértebra e se inclina
Diante da beleza estendida, perdida
No afogar da mente

É sábia, é bela,
É tirada da terra,
Corre como o tempo
E se perde como a vontade
De se amar,
Perdoar

Idéia. Idéia.
Sacrilégio te encontrar
Na oportunidade, te perder,
Me erguer.

E como sol,
Nasço, morro,
Ilumino, ofusco.
Mas a idéia
A idéia brilha
Brilha
E brilha.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

4º Dia: Dos tempos de cólera (II)

Desde esse dia, caí de cama enfermo. Entre febres e delírios, passei semanas doente, sem sequer conseguir me levantar. Doíam os ossos, os músculos, os olhos, o corpo inteiro. A fraqueza tomou conta de mim, como se um olho-grande tivesse me jogado um quebranto.

Dormia o dia inteiro e, sempre quando acordava, me deparava com o rosto de Vesúvia, velando-me o corpo, passando a mão na minha testa para sentir-me a febre. Era uma feição preocupada, como se estivesse pressentindo a minha partida. Suas pálpebras arqueadas, o nariz adunco, as rugas ao redor dos olhos castanhos vivos: era tudo o que eu conseguia ver naquele quarto escuro.

Sempre quando acordava dos delírios, duas ou três vezes ao dia, meu olhos percorriam detidamente o recinto, em busca de Ceci. Mas eu jamais a viria, logo eu lembrava. Ela era invisível. Esperava, então, sentir um vento fresco rodopiando o meu corpo, um sinal de sua presença. Mas não. Apenas via Vesúvia. Os olhos iam perdendo força e a escuridão retomava a minha mente.

Nos meus sonhos, percorria as belas paisagens das narrativas que sempre li e interagia com as personagens. Em todos os sonhos, aparecia, ao fundo, uma cadeira de balanço onde estava sentado um velho. Eu tentava me aproximar, caminhar até a cadeira, mas algo sempre me prendia. De sonho em sonho, fui chegando mais perto, e via que o velho sorria, gargalhava, e me piscava o olho. Aproximei-me mais um pouco e não tive dúvidas: era o Deus coronel de engenho:

- Vem até mim!

Por mais que eu tentasse, não conseguia alcançá-lo. Quanto mais eu andava, mais ele parecia distante, sempre rindo e gargalhando:

- Estou à tua espera.

- Eu não consigo chegar até onde tu estás!

Mas ele não respondia, apenas ria.

Olhei para os lados e percebi que estava no meio da caatinga, no mundo dos homens. Um calafrio percorreu todo o meu corpo quando tive essa constatação. Jamais sonhara com o mundo dos homens. Não queria estar no mundo dos homens, queria estar no meu mundo, criado por mim mesmo, controlado pela minha mente.

Ao meu redor, homens magros e doentes se arrastavam pelo chão, arquenjantes, disputando pedaços de pão que, naquele momento, o Deus coronel de engenho jogava, ao longe, um por um. A cada pedaço que jogava, parava e dava algumas gargalhadas.

Alguns homens estavam bastante feridos, o corpo repleto de caroços por onde saíam sangue e secreções. Havia cactos gigantes, que expeliam espinhos e como flechas atingiam os homens, que gritavam medrosos. Não falavam palavras, mas apenas gritavam. Gritos fortes e agudos, que cada vez se tornavam mais altos e dissonantes, fazendo-me doer o ouvido. Ossos estavam espalhados pelo chão e, quando olhei mais detidamente para alguns homens, percebi que alguns deles já não se mexiam. O cheiro que passei subitamente a sentir quando me aproximei de um deles não me deixou dúvidas: já estavam mortos.

Não bastasse essa constatação, urubus vieram da direção onde estava Deus e passaram a disputar as carniças humanas. Esquartejavam os corpos e despedaçavam os homens, assustando os que ainda pelejavam viver.

Deus passou a jogar água nos homens. Alguns tentavam levantar o pescoço e abrir a boca, na esperança de que pelo menos uma gota lhe refrescasse a garganta sedenta por algum líquido. Porém, a água atingia as feridas abertas dos seus corpos, e mais eles gritavam pela dor, como se tivessem levado chibatadas.

Foram morrendo todos, um por um. Os urubus passaram a não respeitar nem os quase-mortos, comendo-os, arracando-lhe pedaços, tomando-lhes o último fio de vida que persistia. Deus gargalhava, agora sentado na cadeira de balanço. Quando apenas restavam restos de corpos despaçados pelo chão, em meio a ossos e muito, muito sangue, o sol se punha, escondendo-se entre as montanhas ao fim do horizonte. O céu limpo, totalmente avermelhado, testemunhava e acolhia a cena sanguinária. Os urubus se dispersaram e a cena foi sendo desmontada na mesma velocidade em que fora concertada. A escuridão foi tomando conta do cenário e apenas continuei a ouvir a gargalhada de Deus e a revoada dos urubus, ao fundo.

O mundo dos homens era um inferno.
[continua...]

3º Dia: Dos tempos de cólera (I)

O lugar onde tenho a mais forte sensação de liberdade é o quartinho alugado onde moro. Voltar para casa depois de um dia de intenso trabalho e me trancafiar sozinho no meu próprio mundo traduzem uma sensação de paz e contentamento interno tão grande, que a vontade que tenho é de jamais sair ao mundo dos homens.

Todos os dias, subo na minha cama, fecho os olhos e abro os braços o máximo que posso. A ponta do maior dedo da minha mão esquerda toca uma das paredes, e a ponta do maior dedo da mão direita toca a parede oposta. Sinto-me como se estivesse abarcando o meu mundo com os braços; sinto-me superior e independente de tudo; sinto-me altivo, longe dos homens; sinto-me livre.

A minha maior liberdade é sentida num minúsculo cubículo fétido e úmido de um cortiço na zona baixa da cidade. Às vezes, nem eu me entendo...

Ao lado da minha velha e aconchegante cama de madeira, que ocupa quase todo o espaço do recinto, fica uma cômoda de quatro gavetas onde guardo roupas, livros, pertences e, em especial, uma caixinha de papelão, de cor vermelha, em formato de coração, onde ficam um peão, duas fotografias e este diário que escrevo. O peão é um brinquedo que guardo desde criança, como uma nostálgica lembrança do meu passado; uma das fotografias é de minha mãe, que não pude conhecer; a outra fotografia é de Vesúvia.

Desde que eu me entendi no mundo, quando ainda era pequeno, eu morava com Vesúvia. Era uma mulher alta, forte, cabelos bem negros malcuidados e divididos em duas tranças bem longas, os fiapos brancos já aparecendo, o rosto cansado, tostado e enrugado pelo sol e pelo próprio tempo. Vesúvia apenas vestia preto, e sempre no pescoço deixava dependurado um longo e pesado terço de madeira.

- Eu não sou tua mãe, não, Pingolim – sempre lembrava.

O único aspecto de seu passado que eu sabia era a sua nacionalidade portuguesa e o seu estado de viuvez. Vesúvia viera de Portugal ainda jovem, recém-casada. Seu marido, julgando-se visionário, cismara que um melhor futuro encontrariam no Brasil. Vieram para cá somente com as suas respectivas caras e coragens, sem grandes planos ou recomendações. Perambularam por muitos lugares e finalmente chegaram ao sertão, o destino dos sem-destino, para onde se vai quando tudo o mais não dá certo.

Mas Vesúvia subitamente enviuvou. E só sei de sua história até esse ponto. Os detalhes restantes todos comentavam por cochichos, mas nada chegou aos meus ouvidos.
- Teu nome não é Pingolim, mas te chamo assim porque quero.

Vesúvia me dava medo.

Pela manhã, vinham todas as crianças da freguesia para as aulas da mestra Vesúvia, que ensinava as letras do alfabeto, as orações, os cânticos de Jesus e os ensinamentos morais. Eu não podia assistir às aulas com as outras crianças, tendo que ficar sozinho no porão, lendo os livros que ela me passava.

- Não te mistures aos homens, Pingolim.

Pela tarde, enquanto todas as crianças brincavam na rua, Vesúvia vinha tomar a lição comigo. Fazia perguntas sobre tudo o que eu havia lido na manhã, olhando sempre mais forte para a palmatória quando eu estava na iminência de titubear alguma resposta. Após a lição, eu sempre era obrigado a comer um mingau de aveia, quente e salgado. E apenas se eu comesse tudo poderia brincar de desenhar, com os lápis coloridos e as tintas, enquanto ela, frente ao altar que havia na sala, rezava três vezes o mesmo terço, em latim.

- O mundo dos homens lá fora é perigoso, Pingolim – alertava Vesúvia.

E fui crescendo sozinho, mergulhado nas minhas leituras, nos meus desenhos e no mundo criado por mim mesmo. Um mundo parecido com o que eu lia nos livros, cheio de personagens, bonitas paisagens bucólicas e serranas, histórias maniqueístas de reis e de nobres, de príncipes e de mocinhas. Tudo muito diferente do mundo dos homens, entocado no meio do sertão, do calor e da seca, onde pessoas morriam de fome e de sede, onde as árvores não cresciam e tudo já nascia condenado ao fracasso. A minha maior alegria era quando vinha o caxeiro viajante e trazia livros novos, alguns que nem eram da mesma língua que a gente fala, não obstante eu tentasse decifrar o que aquelas letras embaralhadas significavam:

- Isso é francês, Pingolim. Quando tu cresceres, eu te ensino.

- Mas quando eu vou crescer?

- Tu és intanguido assim de ruindade – sentenciava.

Todas as noites, desde criança, escutava vozes estranhas, de pessoas que eu não conhecia nem via, e que falavam coisas que eu não conseguia entender. Por vezes, elas se multiplicavam, entoando uma profusão de vozes que faziam meus pensamentos embaralharem. Eu tentava fechar os olhos e dormir, mas o que via era um jogo de cenas que se sucediam na minha mente, cada vez mais rápido, até o ponto em que eu me revirava irrelutante para os lados e gritava:

- Vesuuuu, és tu quem fala comigo?

- É o vento, Pingolim, que rodopia por entre as árvores e confunde os teus ouvidos.

Com o passar do tempo, as vozes foram se tornando mais nítidas e escassas, até o ponto em que ouvia apenas uma voz doce e feminina. Era uma sensação estranha, pois era como se a voz viesse de dentro de mim e conversasse comigo, lenta e pausadamente. Inicialmente, a descoberta dessas sensações me causou medo, que aos poucos se pacificou e só assim pude me acostumar com a minha interlocutora: era a Ceci.

Ceci se tornou a minha amiga de todas as horas, a companheira nas leituras, a crítica dos meus desenhos, a sopradeira na hora de tomar as lições e de esfriar o mingau quente de aveia. Ceci era como eu, perdia-se nos livros e nas leituras. Possuía uma imaginação tão fértil, que às vezes eu me espantava com a sua inteligência. Provavelmente não teria vindo do mundo dos homens, logo eu imaginara.

- Tu não precisas me ver para gostares de mim, Pingolim. Só é preciso que eu conheça o teu coração e que tu conheças o meu – cochichava Ceci no meu ouvido.

Eu já tinha uns quinze anos quando o sertão foi abatido por uma seca braba, mais forte que a dos anos anteriores. Eu nunca havia visto algo naquela intensidade. As árvores foram amarelando, as vaquinhas foram emagrecendo e o rio Pituba foi minguando até passar apenas um fiapo de água, que não dava nem pra encher as cuias.

Vesúvia corria desesperada todos os dias para ver os bichinhos que emagreciam, os capotes que morriam de sede e a corrente de rio que minguava. Ela punha sempre as duas mãos na cabeça, aflita, olhava para os céus e gritava:

- Maldito aquele que me trouxe para esse inferno!

Eu espiava Vesúvia pela fresta da janela, mas logo voltava aos meus livros, com receio de ser surpreendido, e lá sempre me esperava Ceci, como um sopro de vento que rodopiava e me envolvia.

No entanto, a seca foi piorando e logo vieram rumores de que, no mundo dos homens, muitas pessoas estavam morrendo doentes e fracas.

- O que será de nós, Vesu?

- Deus proverá, Pingolim. Deus proverá. – repetia ela, como um mantra, com um ar misto de esperança e ceticismo, contando pelas janela quantas animais ainda restavam no curral e quantas cuias de água ainda restavam cheias.

Naquele dia, quando eu fiz minha arte no papel, desenhei um senhor velho, barbudo, sentado confortavelmente numa cadeira de balanço de madeira rústica, trajando uma roupa bonita, farta, um casaco de pano bom, anéis de ouro nos dedos e colares no pescoço. Fumava um cachimbo que expelia uma longa fumaça cinza. O seu rosto tinha uma feição tão estranha, que nem eu mesmo consegui decifrar se era contentamento, ironia ou indiferença.

- Que é isso, Pingulim? Um coronel de engenho?

- É não Vesu... – baixei a cabeça, um pouco envergonhado – é Deus.

- Deus?

A feição de Vesúvia mudou completamente, como se tivesse levado um susto ou não acreditasse no que eu havia dito. Os seus olhos me fitaram longamente, denotando raiva e repreensão:

- Você não entende nada de Deus! – sentenciou e saiu ao altar, fazendo incontáveis vezes o sinal da cruz e apertando fortemente o terço que carregava no pescoço.

Nesse mesmo momento, passava um cortejo pela rua. Corri para a janela e espiei. Era mais um velório. Morrera mais um homem, de fome, de sede e de fraqueza. Os homens na procissão entoavam cantos da Igreja, numa únívoca e fraca voz, lenta e arrastada, como se estivessem a caminho do próprio calvário. As velhas carpideiras seguiam chorosas, cumprindo o seu papel, no início do cortejo, anunciando a morte, a velha companheira e amiga de todos ali. O corpo do falecido ia numa rede, carregada por dois velhos de roupas rasgadas, trôpegos e arquejantes. Uma senhora caminhava ao lado, carregando num andor a imagem de um santo.

Com exceção das velhas carpideiras, que choram por profissão, nenhuma pessoa chorava no cortejo, nem mesmo os parentes do falecido. A morte se tornara tão comum e previsível naquele sertão, que, para alguns, já era considerada um alívio.

Mas que Deus é esse que nos submetia a um calvário? Que Deus mais parecido com um coronel de engenho, que, igualmente a um capataz, faz os homens sofrerem, matando-os de fome, de sede e de cansaço, de lapadas e balas, e que depois senta confortável na sua cadeira e fuma o seu cachimbo?

- Isso é castigo! Oh, castigo! – resmungava Vesúvia, como se ouvisse o meu solilóquio.

Que Deus é esse que castiga, que faz sofrer? Deus não é amor e perdão? Que Deus é esse a quem todos esperam, calados e resignados? Quem é? Quem é? Que Deus é esse a quem todos invocam, esperançosos e céticos? Que Deus é esse em quem todos os homens depositam os seus anseios e os seus desejos, mas que parece negligenciar os gritos de dor?

E essas imagens de barro, que afirmam serem santas, o que são? Que homens foram esses que se tornaram tão amados e tão especiais? Será que viveram no mundo dos homens ou viveram nos seus próprios mundos?

Que Deus é esse que se vinga, que olha feio, que não manda chuva a quem precisa? É um Deus que ama e que odeia, vê desastres e continua indiferente, escuta clamores e tampa os ouvidos, sente a dor alheia e não tem piedade. É um Deus que julga os homens na cadeira dos réus, colocando pesos e contrapesos na sua balança imaginária, ponderando e calculando rigidamente os desvios da sua arbitrária lei, alcançando, enfim, um julgamento aclamado pelos homens, culminado pela aplicação de um castigo e nomeado pela indecifrável palavra Justiça.

Enfim, é um Deus tão humano e imprevisível quanto todos os outros homens, chegando eu a desconfiar de que ele seria um homem, tão imaginário e ordinário quanto qualquer outro exemplar dessa espécie.

- Deus proverá... Deus há de prover... Há, sim! Ora se não há! É o nosso pai, nosso criador! – resmungava Vesúvia, já não mais o invocando solenemente, mas lhe exigindo desesperadamente uma atitude imediata.

- O pai de Deus é o homem, Vesu.

Ela percorreu a sala lentamente, fitando mais uma vez o meu desenho de Deus coronel de engenho que estava sobre a mesa. Franziu a testa e afirmou, impiedosamente, o dedo em riste:

- Tu não entendes mesmo nada de Deus, Pingolim. Nada! Nada! nada! Tantas lições que eu já te dei e não aprendeste nada. Tu és um ingrato. Vais ser castigado!

- Castigado por Deus ou pelos homens?

Vesúvia me encarou longa e firmemente, o olhar vermelho, preparando-se para dizer mais uma intempérie. Desistiu. Pegou o papel com o meu desenho e o amassou lentamente, como se tivesse prazer em fazer aquilo.

Eu não aguentei aquele olhar vermelho tão fortemente lançado sobre mim e corri subtamente para os meus livros, à procura de Ceci. Mas ela lá não estava. Gritei baixinho pelo seu nome. Ceci! Ceci! Ceci! Onde está você? Mas apenas obtive como resposta o silêncio. Um silêncio de ansiedade, receoso, ensurdecedor, que arrepia os pelos e faz doer o estômago. Corri pela casa esperando Ceci se manifestar, dentro ou fora de mim. Pecorri os longos corredores do sobrado onde vivíamos, revistei os quartos, a parte de baixo das camas, a traseira das estantes e tudo quanto pude alcançar. Mas não conseguia ouvir a sua voz nem sentir a sua presença. Encostado numa parede, deixei-me escorregar e caí no chão, ardendo em febre, choroso e especulando que a Ceci talvez morrera de fraqueza, levada pela seca.

- O Deus é apenas mais um homem ingrato – eu resmungava baixinho.
[continua...]

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Alto Relevo de Resignação



Representação. Reconheci essa palavra hoje. Acolho-me da humildade para dizer que não a compreendi, mas o silêncio por dentro de máscaras nunca me foi tão fielmente remontado. Não penso antes de escrever. Aliás, não penso antes de agir, de sentir. Defino depois. Crio sentidos depois. Sempre somos mais introspectivos após a segurança do ato constituído. É, dura constatação. Hoje li frases familiares, ao mesmo tempo desconhecidas. Não sei se as escrevi há algum tempo. Não sei se nunca as tinha visto antes. O que importa? Talvez as escrevi e nunca as vi ao mesmo tempo. É difícil remontar, reconstituir. Por isso, representar. Redefinir, na imaginação, o que está ao alcance de meus sentidos forjadores da realidade.

Reconheço o limite dentro desse escopo calado. Mereço melhor explicação, empreendo significados intrusos. Perdão. Retiro minha colocação. Estou no limite de meu pensamento. Às vezes me confundo com minha própria imagem. Como meu amigo, João Paulo, percebo minha condição de moeda: sou jogado no mundo para me virar. Condição humana, condição repelida pelos bastidores naturais. Como empenhar-se em definir o que não me é plausível? Ando, ando e ando. Conheço lugares. Reconheço lugares. Depois leio sobre os mesmos, em livros de minha autoria, sem lembrança alguma das ruas, dos monumentos e de minhas memórias inscritas em seus arredores. Estou à beira da loucura.

Retruco essa afirmação. Estou mais lúcido do que nunca. Louco são meus parceiros de conversa. Outro dia, buscando meus óculos escuros, notei minha mão esquerda tremendo. Busquei a vela em cima do móvel, ao lado de minha cama. Nunca sei o nome desses objetos. Pulo todas as linhas dos livros que tentam me explicar essas denominações inúteis. Mas enfim, a segurei para decifrar meu problema. Estou tremendo porque posso? Ou estou tremendo por incapacidade física de manter minha mão estável?

Retorno. Volto à vela. Minha mão entoava sua superfície lisa enquanto o fogo, como se lutasse contra seu maior inimigo, se exaltava por toda a parte. Vi-me perdido naquele momento. O fogo, que não possuía um grão de vida a mais que eu, respondia aos traçados do mundo de forma muito mais vivaz. A cera derrete. Traz a sensação aos meus dedos. Estão enxaguados pelo véu entusiástico da resignação. Talvez por saber que estava com seus dias contados, a combustão se encantava com minha dor e eu, por respeito à sua breve morte, permanecia entregue ao ardente edredom branco que envolvia minhas extremidades.

Repouso. Foi aí que percebi. A força de vontade, a escolha, se assim melhor lhe incumbir, nada me serve. Especialmente quando estou deslumbrado com um acontecimento único, resplandecente, encantador. Minha mão tremia, e nada percebi até o fogo se apagar. Minha pele, antes enrugada somente nas dobras dos dedos, preenchia-se de bolhas e riscos vermelhos, todos cobertos pela névoa pacífica da mesma substância que dava vida ao incandescer anterior. Tranqüilidade agonizante. Dizem que após um determinado tempo, nossos nervos são destruídos ao ponto de não sentirmos mais a queimadura. Qual o sentido do mundo se nada sinto? Não me agüento de rir. Como seria proferir uma frase dessas sem poder sentir o quanto é burlesca?

Reprovo essa possibilidade. Adoro sentir. Perfeito, sinto o próprio sentir. Ele é um invólucro de meu ser, de meu estar no mundo. Retirar de mim, ou do mundo, a capacidade de sentir, seria impedir o relativo, impedir o individual. Viver num mundo objetivo, no qual só existe um amor, um jogo de cena e um pôr-do-sol seria uma blasfêmia ao corpo fogoso da vida terrestre. Sinto-me bem por poder queimar, por estar vulnerável diante da cera personificada. Aliás, sou mais vivo que o fogo pela minha capacidade de sofrer. Sofrer nada mais é do que poder sentir felicidade. Não é possível ser sofredor se nunca esteve feliz. O sofredor é, necessariamente, um antigo feliz. Que absurdo. Objetivar o não objetivo. Será possível ser feliz eternamente? Ora, essa pessoa sabe que é feliz, ao ser sempre feliz? Ah, o sofrimento despe o ridículo, e o torna formoso.

Reluto com minhas indagações. Aprendi hoje, representação é reproduzir o que se pensa. Reproduzir é apresentar, novamente, o que, de certa forma, já foi em alguma hora apresentado. Aqui, nesse diário tão meu quanto seu, busco representar minhas montagens do real. Logo, tento apresentar, novamente, o que eu penso, o que eu sinto, como se isso já estivesse sido apresentado, em alguma outra instância, durante algum outro momento. Eu não penso antes de escrever. Não procuro palavras propícias ao fraseamento perfeito. Invento conceitos. Sinto retoques nos mesmos. Mas nunca, nunca, tenho em mente o que está no papel, antes mesmo dele estar ali. Talvez por isso não entendi a palavra. Talvez por isso, hoje, estou feliz. A palavra genérica, a expectativa comum estava aquém da minha maneira de ser. Uma palavra genérica, a todos impostas, que não conseguiu definir minha forma de ser, que não foi capaz de englobar meu comportamento.





quinta-feira, 24 de maio de 2007

1º Dia: As rosas não falam

É durante madrugada, enquanto a cidade dorme, que gosto de andar pelas ruas. Os pés caminham descalços, sempre. Desde criança, nunca gostei de andar calçado. Gostava mesmo era de sentir a firmeza do chão, a dureza da vida. Andava pela caatinga de cima a baixo, pisando nas pedras, nas plantas, nos espinhos, nos bichos. Quando eu ainda nem era adulto, meus pés já não criavam calos. Uma crosta de pele dura havia os envolvido e assim eles permanecem até hoje.

A cidade dorme.

Vou caminhando pelas ruas, calmo, lento. O meu sono não tem pressa. Bate uma brisa fresca no meu rosto. O silêncio da madrugada é interrompido, raramente, por um carro que passa. Vou percorrendo um caminho sem destino, por aqui e por ali, observando o mundo que sinto e designando sentidos para cada lugar que passo. Não gosto de chamar as ruas pelos seus nomes usuais. Arrepia-me a idéia de dizer Rua Epitácio Pessoa ou Avenida das Nações. Não, não, não gosto desses nomes sem sentido e impensados que os homens vão atribuindo aos lugares que passamos. Prefiro chamar a Avenida das Nações de rua da rosa, por causa de uma roseira linda e solitária que um dia achei no meio do capim do meio-fio, ou a Avenida Epitácio Pessoa de rua da minha mãe, por causa de uma senhora que por ali vi há uns anos, no meio da madrugada, trôpega, e jurei que fosse a minha amada (e desconhecida) genitora.

E se hoje chamo uma via de rua da rosa, amanhã posso vir a chamá-la de outro nome, e assim por diante. Basta que algo diferente e mais profundo me sensibilize da próxima vez em que eu passe por ali. A antiga rua do atropelamento hoje chamo de rua das chinesas, e a antiga rua da morte (onde há um cemitério) hoje chamo de rua da vida (onde, na porta do cemitério, uma senhora de cinquenta anos deu luz a gêmeos).

Odeio a idéia da imutabilidade. Posso até fazer as mesmas coisas todos os dias, andar pelos mesmos lugares, cumprimentar as mesmas pessoas, comer as mesmas comidas, mas com certeza penso, em cada momento e em cada repetição, coisas diferentes. Cada vez que passo pela rua do esgoto fedorento ou cada vez que leio o mesmo livro que li semana passada, sinto o novo. Não estou aqui falando do velho carpe diem, traduzido por alguns como viva seus dias de um jeito diferente em todas as horas. Estou falando de algo mais profundo, interior, inegável, talvez fisiológico. Eu penso. Penso. Penso. E não penso as mesmas coisas em todas as horas e muito menos no mesmo segundo. Não decido o que penso nem o que sinto. Eu penso. E não quero hoje ir mais além do que esse verbo. Não quero ficar hoje divagando, como faço às vezes, tentando descobrir os motivos pelos quais os neurônios trabalham ou as pretensas categorias do pensamento (que insistem em afirmar alguns doidos que escrevem sobre isso). Não. Hoje quero apenas estacionar nessa divagação. Eu penso. Obtenho diferentes observações cada vez que olho a mesma roseira solitária que vive na rua da rosa, ou cada vez que sinto o perfume da Ceci, nas tardes da biblioteca. Penso um turbilhão de coisas num mesmo segundo, como uma profusão de constatações advindas de todos os modos com que tenho contato ao que é externo a mim. Eu enxergo, eu sinto odores, eu sinto gosto do que ponho na boca, eu ouço, e eu me arrepio com o que toca o meu corpo. E tudo isso num mesmo instante, sem que eu ordene, decida ou controle, sem que eu tenha ao menos tempo de refletir profundamente sobre quais fenômenos estão acontencendo dentro e fora de mim. Eu vou atribuindo sentidos ao que passa, sentidos que absorvi de outros sentido que os homens criaram, mas que vou tentando mudar aqui e ali, juntando, dividindo ou substituindo, criando a ilusão de que eu crio meus próprios significados e vou me desvencilhando dos homens, mas, ainda assim, tendo a certeza de que, quanto mais acho que me distancio, mais me torno refém do que pensam eles. Os homens...

A cidade dorme.

Num dia em que andava tranquilo pela rua das vacas, vi um pontinho vermelho no meio de uma imensidão de verde. Sem nem ter muita noção do que estava fazendo, corri para entender o que era aquilo. Ia fazendo inúmeras divagações na medida em que me aproximava do ponto vermelho, até constantar, de maneira indubitável, que se tratava de uma roseira. E que linda roseira. Havia uma rosa linda, enorme, e outras duas pequenininhas que estavam na iminência de desabrochar. A partir de então, a rua das vacas passou a se chamar rua das rosas.

Todos os dias eu passava por ali para admirar as rosas que ora morriam, ora nasciam. E cada dia descobria um aspecto diferente daquela planta, desde um sulco mais grosso que trasladava o caule até a grossura dos limbos das folhas da planta. Passava horas a fio sentado ao lado da roseira, observando milimetricamente todas as suas nuances. Voltava inquieto para casa, angustiado para saber o que eu acharia de novo no outro dia. Será que um dia seria capaz de esgotar todas as características da roseira que eu poderia descobrir?

Não, parecia não esgotarem as possibilidades. Cada vez que a olhava, percebia uma coisa que não havia percebido nos dias anteriores. Era como se o acaso me direcionasse inevitavelmente para a observação de um novo aspecto da planta. Preocupado em não incorrer em repetições, passei a anotar, como num diário, as observações novas que, a cada dia, inferia da roseira. Todas as manhãs corria eu à rua da rosa, caderno e lápis em punho, para observar a roseira. A experiência botânica durou meses, até que a seca chegou e nenhum broto novo nasceu, as folhas foram amarelando, o caule foi enrijecendo e, para o meu desespero, numa manhã, quando eu lá cheguei, os coletores de lixo haviam arrancado-a do solo.

Com os olhos cheios de lágrimas, gritei pela roseira, corri pela imensidão verde do mato, o dedo em riste, apontando para o nada, invocando a roseira e injuriando quem quer que a tivesse assassinado. Num impulso de raiva, não hesitei em pegar o caderno, rasgar folha por folha e engolir uma a uma. Os homens me olhavam espantados, surpresos. E eu proclamava para todos os atônitos que ali me observavam que aquela roseira, única e solitária, despretenciosamente, fizera-me um filósofo. Depois daquele dia, evitei passar pela rua da rosa. A rua perdera o seu principal sentido e eu não queria que outro significado tão mais profundo subjugasse a história da rosa. A idéia de passar por ali passou a me dar medo.